Analógicos, com orgulho

Conheça histórias de quem optou por carreiras que fogem da rotina ultraconectada e priorizam o fazer manual.





Em uma era na qual existem mais smartphones do que habitantes no Brasil, estamos viciados em redes sociais e as profissões voltadas à tecnologia crescem cada vez mais, optar por trabalhos que priorizam o fazer manual pode soar estranho e até antiquado. Apesar disso, muita gente tem feito o movimento contrário e encontrado em atividades off-line o prazer e, com sorte, até a calmaria perdida em meio a telinhas e telonas.

“O trabalho manual no Brasil é subjugado. Existem até ditados preconceituosos, como o de que a pessoa precisa estudar, porque ‘a caneta é mais leve que a enxada'”, diz o marceneiro Rodrigo Silveira. Não que esse tipo de pré-julgamento tenha afetado a paixão de Rodrigo por seu ofício. “É uma sensação de liberdade muito grande ter a capacidade de construir coisas úteis”, diz ele.

De fato, nesse cenário em que ainda tentamos entender como um meme e outros tipos de NFT podem ser vendidos por milhões de dólares, há um certo conforto em lidar com aquilo que é palpável. “Produzir um alimento é um trabalho muito lindo”, diz a apicultora Teresa Raquel Bastos, que deixou o jornalismo para se dedicar à produção de mel.

A seguir, conheça a história de Rodrigo, Teresa e de outras pessoas que escolheram viver – e trabalhar – com a mente, o coração, e as mãos.

Rodrigo Silveira, marceneiro

Rodrigo Silveira: “Um bom dia de trabalho é quando chego em casa exausto e muito sujo”.Foto: Arquivo pessoal:

O caminho na marcenaria sempre esteve ligado ao design autoral para Rodrigo Silveira, de 40 anos. Trabalhando na área há 17 anos, ele começou desenhando e produzindo para amigos e familiares. Em sua trajetória, fez muitas pesquisas, sempre com o olhar voltado para a marcenaria tradicional, que não usa ferragens metálicas. “A marcenaria é um trabalho braçal, sim, mas a madeira exige muito conhecimento, já que no Brasil, por não haver formação específica, ele é empírico”, explica ele. Depois de dominada essa técnica, Rodrigo percebeu a importância de estar no controle de todo o processo, sempre focado no manejo sustentável. “Até hoje tenho muito prazer em ver e entender a transformação de uma árvore, um ser poderoso, em uma peça subserviente a nós, humanos. Pra mim, um bom dia de trabalho é quando chego em casa exausto e muito, muito sujo. É um baita orgulho”.

Para ele, a melhor parte de trabalhar totalmente com as mãos é a sensação de liberdade em poder construir objetos que tenham utilidade. “Até hoje isso me impressiona e me satisfaz. Eu enxergo a tecnologia apenas como mais uma ferramenta que pode me auxiliar. Escolhi o método artesanal para produzir, não porque acho melhor ou pior do que algum outro, mas, sim, por fazer mais sentido pra mim.”

Teresa Raquel Bastos, apicultora

Teresa e uma melgueira: relação de amor e respeito pelas abelhas.Foto: Chico Rasta

Quando deixou Teresina para cursar a faculdade de jornalismo em São Paulo, Teresa Raquel Bastos, de 31 anos, queria saber de “muito concreto e cidade grande”, como ela relembra. Encontrou o que queria, complementou a graduação com um curso sobre redes sociais e passou por diferentes redações. E foi justamente em uma delas, na revista Globo Rural, que passou a se reconectar com suas origens – o pai de Teresa, Wener Bastos, é apicultor há quase 40 anos. “Comecei a me apaixonar de novo pelas minhas raízes rurais. Foi quando passei a atentar para esse potencial, para essa beleza da profissão do meu pai”, conta ela.

A reconexão com o campo continuou no emprego seguinte, o projeto Loon, do Google, que pretendia levar a internet a áreas remotas por meio de balões. Apesar do viés altamente tecnológico, o trabalho de Teresa envolvia o contato com o meio rural, já que era sua função fazer parcerias com fazendas e outros rincões para permitir o pouso dos balões. Já nessa época, ela começou a se envolver na empresa de mel do pai, a Bee Mel, divulgando o produto para clientes e restaurantes paulistanos. O favo de mel de marmeleiro, produzido por eles, chegou a compor o menu degustação do D.O.M, acompanhando o emblemático aligot da casa.

Com o fim do projeto Loon, ela retornou à Teresina e assumiu de vez a empresa familiar. Cuida de toda a parte administrativa, mas também veste a roupa antiferroada para lidar diretamente com as colmeias. “É uma relação de amor e respeito”, diz a apicultora, sobre seu envolvimento com as abelhas. “Quando você vai trabalhar com elas, sempre aprende alguma coisa. É bonito ver como elas se adaptam, como elas se articulam, se comunicam”, conta.

Uma das mudanças que Teresa implementou na Bee Mel foi a valorização das floradas especiais, como o exótico mel da faveira, que é amargo. Este ano, Teresa concluiu o curso de sommelière de mel, em Bolonha, na Itália. É a primeira profissional com essa especialização no país: “Quero ensinar as pessoas a identificarem um mel de qualidade.”

Kevin da Silva, bordadeiro

Kevin da Silva em ação: orixás nos bastidores de bordados.Foto: Arquivo pessoal

Aos 25 anos, Kevin da Silva encontrou no bordado contemporâneo uma forma delicada e potente de celebrar sua ancestralidade e transformar este fazer manual, atrelado tradicionalmente ao universo feminino, em profissão.

“Sou técnico de modelagem de vestuário e, dentro dessa área, descobri novas possibilidades e disciplinas que eu gostava mais, para além da modelagem. Quando terminei o curso, em 2012, conheci o bordado contemporâneo e me apaixonei. Comecei fazendo como hobby e comercializei algumas peças naquela época, mas não era uma profissão estipulada”, conta ele, que tem um ateliê no bairro da Liberdade, região central de São Paulo.

Com o passar dos anos, Kevin continuou bordando, produzindo trabalhos por encomenda, e o desejo de retratar a cultura preta e seus ancestrais já era uma realidade. “Mas eu não queria falar de escravidão, diáspora e dor; queria mostrar algo com cor e alegria, de forma mais espiritual. Estudei bastante sobre, criei uma identidade visual e comecei a bordar orixás. Hoje, 95% das encomendas que recebo são de orixás ou voltadas à cultura preta, ilustrações que retratam dia a dia de um terreiro e rituais”, explica.

“O estereótipo feminino do bordado ainda é muito forte”, diz Kevin.Foto: Arquivo pessoal

Kevin diz que ainda existem pouquíssimos homens na área e faz questão de mostrar o rosto em suas redes sociais, principalmente por ser um homem preto que tenta trazer discussões sobre gênero e raça com seus seguidores: “O estereótipo feminino do bordado ainda é muito forte, e as pessoas não conhecem as possibilidades do trabalho manual, da pintura, do tear. Acho também que posso inspirar outras pessoas pretas a fazerem o mesmo”.

Ronaldo Oliveira, jardineiro

Ronaldo Oliveira: trabalho é também uma terapia.Foto: Arquivo pessoal

Trabalho que envolve delicadeza, cuidados especiais e, principalmente, muita paciência para vê-lo, literalmente, florescer, a jardinagem entrou na vida de Ronaldo Oliveira há mais de 10 anos. Após perceber que a área estava em franca expansão, o paulistano, de 42 anos, teve a oportunidade de aliar sua antiga paixão ao fazer profissional.

“Eu trabalhava com monitoramento de linhas de transporte público em São Paulo e já gostava muito de plantas. Então, encontrei uma oportunidade de mercado, fiz alguns cursos de paisagismo e comecei a me estabelecer. No começo, eu trabalhei para uma empresa, mas há seis anos sou autônomo e já tenho uma carteira de clientes”, fala ele, que trabalha, inclusive, com jardins comestíveis.

Para Ronaldo, estar à frente de um trabalho 100% manual em uma era em que a maioria das pessoas passa horas na frente do computador traz a oportunidade de estreitar a relação entre homem e natureza.

“É algo que envolve paciência, porque a planta tem seus períodos certos de nascimento, crescimento e morte. Tem toda uma variedade de coisas que me dá esse prazer no fazer, além de tocar na terra, algo que já veio originalmente com o ser humano. A planta traz essa tranquilidade para as pessoas. Acho que é até uma terapia”, reflete.

Samuel Carvalho, agricultor

Ronaldo na colheita da mandioca: a rotina começa pouco antes do nascer do sol.Foto: Arquivo pessoal:

Há cinco anos, Samuel Carvalho, de 31 anos, tem uma rotina bem diferente de quem mora em áreas urbanas e passa horas e horas na frente do computador ou do celular. Na Fazenda Malabar, em Itatiba, a cerca de 80 km de SP, ele trabalha com agricultura florestal, colocando em prática o desejo de influenciar no ecossistema. No local, os trabalhadores praticam um modelo autossustentável que abastece 50 famílias, cada uma pagando uma contribuição mensal.

“Na agricultura orgânica que produz hortaliças, a cada quatro meses você recicla o canteiro, aí planta novamente as mesmas coisas, e o ecossistema não evolui. Na agrofloresta, você planta uma hortaliça, mas também uma árvore, uma planta arbustiva com madeira, depois uma madeira de lei. No final, esse ecossistema se torna uma floresta, e acredito que esse é um caminho para o futuro”, diz ele.

Um dia na vida dele começa bem cedo, pouco antes do nascer do sol, e tem como foco corpo em movimento, 100% de contato com a natureza e consigo mesmo e, também, mente aguçada. Para Samuel, aliás, trabalho e lazer praticamente se misturam. “Eu me sinto bem trabalhando; muita gente sai do trabalho para descansar, e eu descanso no trabalho. Também gosto de cozinhar, caminhar e fazer atividades da casa”, explica.

Fabio Pasquale, padeiro

Fabio Pasquale: mão como extensão do coração.Foto: Divulgação

Vindo de uma família com história no ramo da gastronomia – seus pais tinham um pequeno restaurante na região da Avenida Paulista –, Fabio Pasquale diz que, de um jeito ou de outro, a vida sempre o levou a trabalhar na área. Formado em Zootecnia e com jeito para lidar com animais, ele trabalhou durante três anos em Natal, no RN, em um local de criação de camarões.

Mais tarde, seu pai deixou o estabelecimento a cargo de Fabio e da sua irmã. “Toquei esse empreendimento durante uns três anos e, nesse período, me formei na faculdade de Gastronomia. Meu trabalho de conclusão de curso foi o projeto do Sancho, um bar de tapas”, conta Fabio. “Como as tapas têm tudo a ver com pão, e eu não estava satisfeito com os pães que usávamos, fui estudar sobre”, relembra.

Em 2013, ele fez os primeiros cursos de panificação e, ao se especializar, passou a produzir os próprios pães, montando uma pequena padaria no local. Com o passar do tempo, a panificação foi ganhando cada vez mais espaço na vida de Fabio, o que o levou construir a casa de pães Le Blé.

“Eu sempre busquei um trabalho manual, é algo que faz parte de mim, e a panificação traz uma experiência muito sensorial o tempo inteiro, porque não é possível fazer um pão sem o toque na massa, sem entender de temperaturas. Meu terapeuta diz que a mão é uma extensão do coração”, explica. E como Fabio faz para relaxar? “Cozinhando para os amigos, tomando um vinho. As coisas acabam se misturando um pouco.”

(colaborou Patricia Oyama)

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