Dior e Saint Laurent marcam o início da semana de moda de Paris

Duas das marcas mais tradicionais da França reforçam algumas tradições ainda em jogo no mundo do luxo.





Dado o atual estado das coisas, é compreensível olhar para o cenário que a artista Eva Jospin criou para o desfile de verão 2023 da Dior e pensar em algo sombrio ou macabro. Porém, não há nada de muito assustador nas roupas que a diretora de criação Maria Grazia Chiuri apresentou nesta temporada.

Pelo contrário, são peças bastante delicadas, trabalhadas com renda guipir, bordados florais, saias infladas (com crinolina ou volumes abaloados), mangas amplas, um tanto de babados, outro tantinho de plissados e uma até uma releitura do corset – mais quadrado e gráfico.

É verdade que a cartela de cores é dominada por pretos, com alguns respiros de brancos e beges. Mas, de novo, o motivo para isso tem a ver com sentimentos, com demonstração de poder e demarcação social.

Dior.Foto: Divulgação

Dior.Foto: Divulgação

É que uma das principais inspirações da estilista italiana foi a rainha Catarina de Médici, nascida numa das famílias mais poderosas de Florença e casada com o rei Henrique da França, que nunca lhe deu muita abertura para assuntos do Estado (isso só foi acontecer quando seus três filhos assumiram o trono). Ainda assim, sua influência foi marcante na corte francesa, principalmente esteticamente.

Ela é creditada por introduzir o uso do corset e dos saltos altos. Mais do que isso, escolheu o preto como sua cor oficial após a morte do marido. Em parte como luto, em parte para se destacar num delicado jogo de poder. É que a cor, naquela época, era bastante rara – e cara. Imagina uma coleção de roupas toda nesse tom.

Foi justamente a relação entre mulheres, moda e poder que atraiu Maria Grazia. Em entrevistas à imprensa internacional, ela comentou que fica impressionada como muitos jovens não gostam de moda por não concordar com as dinâmicas de poder do sistema. Segundo a estilista, a referência a Médici vem para mostrar como esse jogo tem várias faces e interpretações. No caso, de uma mulher lutando para ser ouvida, considerada, para ter voz ativa. É um ponto de vista bastante válido, ainda que em um contexto eurocêntrico e monárquico.

Dior.Foto: Divulgação

Dior.Foto: Divulgação

Para atualizar o tema, a estilista combina elementos contemporâneos ou com aparência esportiva a trajes e silhuetas usados pela corte francesa no século 16. O tafetá chega com cara de naílon, com ajustes elásticos e cintos. As capas e casacos emprestam a leveza e funcionalidade das parkas e o jeans ganham bordados dourados. Os grafismos em preto e branco da estampa de um mapa de Paris, tirada de um lenço dos anos 1950, também colabora com a parte mais atual da coleção.

Ainda assim, e principalmente depois de uma apresentação com veia futurista e tecnológica, no inverno 2022, a nostalgia nas falas da diretora de criação não deve ajudar a mudar a percepção dos jovens aos quais ela se refere. O fascínio da moda de luxo por ideais ultrapassados de exclusividade, poder, riqueza, e beleza diz muito sobre a relutância do setor em abraçar verdadeiramente novas formas de representação – de tudo – para além do discurso.

Na Saint Laurent, apegos a tempos e noções hoje descabidas também atrapalham o que poderia ter sido uma boa coleção. Como de costume, o desfile aconteceu em frente a Torre Eiffel, ao redor das fontes do Trocadero. Na passarela, o diretor de criação Anthony Vaccarello segue sua exploração dos arquivos da marca, em especial de coleções de meados dos anos 1980.

Vem daí os casacos de ombros imponentes e comprimento alongado, os vestidos de seda e malha ajustados ao corpo e com capuzes e drapeados nas partes de cima. A imagem de Grace Jones com look de Azzedine Alaïa, na década de 1980, é a primeira que vem à cabeça, mas não custa lembrar que Yves, em si, com quem Alaïa trabalhou nos ateliês da Dior, já explorava a silhueta desde os anos 1960.

Vaccarello tem habilidades excepcionais para cortar alguns dos casacos e calças de alfaiataria mais precisos do mercado. Porém, sua obsessão por silhuetas extremamente justas e um ideal de sensualidade e beleza um tanto antigo se mostra, de novo limitante (já aconteceu em outras temporadas). Por mais bela que seja, é difícil acreditar que ainda tem gente (com exceção de Kim Kardashian talvez) disposta a usar uma roupa que não a permite andar livremente.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes.