Desde 2020, o termo “hot girl” – que já estava pipocando por diversas trends – finalmente virou hit solo no TikTok. Primeiro, com a música “Girls in the hood”, da rapper estadunidense Megan Thee Stallion, misturada com um trecho de um comercial da Coach estrelado pela cantora em que ela diz “I can’t talk right now I’m doing hot girl shit” (em tradução livre: eu não posso conversar agora, estou fazendo coisas de garota gostosa). Nos vídeos, contudo, os usuários realizam as mais diversas atividades cotidianas: desde limpar a casa até estudar.
Depois, durante a pandemia, foi a vez de o “hot girl walk” bombar. Ele é, basicamente, um incentivo para sair de casa e caminhar ao ar livre. Aqui, o objetivo não é conquistar um corpo dentro do padrão de beleza normativo. O foco está na inclusão de um novo hábito saudável para a sua rotina. Alguns vídeos ainda aconselham usar esse momento para fazer autoafirmações: algo como repetir para si mesmo ao que se é grata, os seus objetivos e, claro, o quanto você é gostosa. “Pode não parecer muita coisa, mas para alguém que é sedentário, pode ajudar tanto na saúde mental quanto na física. Não é sobre fazer restrições para ter um corpo magro e malhado. É sobre autocuidado. É mudar os hábitos, e não o corpo”, comenta Isabella Lacerda, nutricionista e criadora de conteúdo no TikTok que sempre se refere aos seus seguidores como “grandes gostosas e gostosos”.
Mais recentemente, com a chegada do verão no Hemisfério Norte, o termo “hot girl summer” também ganhou popularidade. Ao contrário do que se possa imaginar, no entanto, ele não fala sobre conquistar o famigerado “corpo de verão”. A maioria dos vídeos defende a ideia de usar esse período para se cuidar, deixar os crushes descansando um pouco e curtir a vida com os amigos.
“Ser gostosa vai muito além do espelho: ele é muito pequeno. É muito medíocre pensar que a nossa felicidade possa depender dele.”
Letticia Muniz posou nua para as lentes de Bob Wolfenson no Volume 3 da edição impressa da ELLE Brasil.Foto: Bob Wolfenson
No fim das contas, hoje em dia, o que é ser gostosa, então? É uma energia, é como vivemos e o que fazemos no mundo e, principalmente, como nós mesmos nos enxergamos. Para Letticia Munniz, desassociar o conceito do “hot girl” do corpo físico é essencial para que a gente consiga encontrar alguma paz interior. “Ser gostosa vai muito além do espelho: ele é muito pequeno. É muito medíocre pensar que a nossa felicidade possa depender dele”, comenta. A modelo e apresentadora conta que sua percepção mudou quando começou a enxergar a potência que havia em ser quem ela é para além da estética. “Ser bonita é o de menos. Eu faço coisas tão incríveis na minha vida, no meu trabalho, na maneira como eu me relaciono com as pessoas. Eu sou engraçada, sou uma boa companhia. Essa nova ideia do ‘hot girl’ é sobre isto: ser quem você é e fazer o que você faz.”
Isso significa tirar o poder da opinião alheia de dizer o que somos ou deixamos de ser. Para sermos grandes gostosos, basta nos declararmos como tal. Ou seja, se o que te faz bem é estudar, estude! Se é sair com os amigos no final de semana, saia! Fazer aquilo que nos faz feliz é o que nos torna atraentes de verdade. “A gente precisa aprender a fazer coisas para o nosso bem, e não pelo outro – que é o que acontece quando a gente atrela a felicidade à nossa imagem. Fazer tudo por nós mesmos é o que traz felicidade de verdade. Essa energia de garota gostosa muda tudo na nossa vida. É uma sensação de plenitude mesmo”, compartilha Letticia.
Do ponto de vista da psicologia, contudo, a história ganha outros contornos. De acordo com a psicóloga Camila Puertas, alterar a interpretação de um conceito é sim uma maneira de agregar mudança aos próprios valores sociais, “porém o ato de pensar sobre um tema ou uma ideia imposta, por si só, não é capaz de promover mudanças”, pontua. Para a especialista, só dizer que se sente gostosa não vai mudar completamente a nossa vida. Isso precisa se tornar um novo estado, que nos faça realmente atuar no mundo e em nós mesmos de forma diferente.
A especialista ainda faz um alerta sobre essas trends nas redes sociais. “É importante ressaltar que algumas crenças disseminadas podem causar um impacto bastante negativo quando provocam algum tipo de convencimento forçado e irreal sobre o mundo e sobre si mesmo. Isso acontece no momento em que o estilo de vida colocado ali interrompe o processo saudável de auto-observação”, alerta sobre os perigos da positividade tóxica.
Para Isabella, o problema maior é como alguns desses vídeos são apresentados, levando em consideração também a curta duração deles – será que é mesmo possível mostrar a realidade em um minuto? “De fato, quando você passa a cuidar de si mesmo, cria novos hábitos que mudam a sua autoestima. Mas alguns vídeos mostram aquele clichê do suco verde de manhã e de acordar supercedo todos os dias. Tenho a sensação de que isso pode acabar virando outro padrão. E ninguém mostra os dias ruins, que todo mundo tem!”
“Esses vídeos podem ser motivacionais, mas não representam o que é o amor-próprio, que é sobre se enxergar internamente. É sobre não se contentar com o que não gostamos em nós e trabalhar para fazer mudanças. É sobre saber cuidar do próprio dinheiro, gostar da própria companhia e saber ficar sozinha. É saber diferenciar relações boas das que são só por interesse. É saber dizer não e ir embora quando algo não te serve mais”, finaliza a nutricionista.