O que o BDSM me ensinou sobre cura, cuidado e consentimento
Para além dos tabus, os jogos eróticos podem revelar seu poder libertador e até um lado cheio de ternura.
A curta sigla, que representa tantas coisas diferentes, como bondage e disciplina, dominação e submissão, sadismo e masoquismo, e que ganhou popularidade nas últimas décadas junto com a ascensão da internet, hoje pode ser trend e ter seus símbolos ocupando espaços nas passarelas e no guarda-roupa de muita gente. Mas nem só de estilo vive o BDSM. Acredito que, acima de muitas outras coisas clássicas e até óbvias que rondam esse mundo, ele também é sobre aprender a se cuidar e deixar ser cuidado, vivenciando o bem-estar e a cura num sentido muito mais amplo.
Mas o que poderia ter de curativo em algo conhecido principalmente por promover dor? Primeiro, precisamos entender que praticar BDSM não é sair dando uns tapas ou amarrando os outros, assim, sem mais nem menos. Também não é apenas vestir roupas de couro ou látex. Essa pode ser uma pequeníssima ponta de um iceberg imenso (diria que até maior do que aquele que naufragou o Titanic, risos), e que em sua base se encontram acordos, contratos, diálogo, intenção, confiança, autoconhecimento, limites, palavras de segurança, aftercare e por aí vai. Fora que as possibilidades são infinitas e podem nem envolver o toque físico, pra vocês terem uma ideia.
Existem jogos de poder, mil dinâmicas entre dominantes e submissos, papéis a serem interpretados e o que mais a imaginação dos desejantes permitir, desde que seja tudo muito bem conversado e consentido. Um estudo de 2019 publicado pelo Sexual Medicine classificou o BDSM como “um físico, psicológico e sexual papel envolvendo trocas de poder entre participantes de maneira consensual”.
Meu primeiro contato com esse universo foi justamente trabalhando com vendas de itens e ferramentas que ajudam as pessoas a explorarem melhor as intensas sensações que essas trocas oferecem. Pra ser bem honesta, no começo não entendia nada e achava certas coisas engraçadas ou até estranhas demais pra mim. Pra quê eu iria querer um chicote? Qual graça uma algema pode ter? Tudo parecia muito caricato e até a estética me incomodava.
A gente tem mania de racionalizar tudo, de querer julgar e selecionar o que deve ser jogado na caixa do certo ou do errado, mas, às vezes, a vida mostra que muitas das coisas (se não a maioria) não carecem de nenhuma compreensão, só do sentir. Claro, estudar sobre um mundo desconhecido também ajuda a ampliar os horizontes, mas é fechando os olhos e permitindo que as sensações transpassem o corpo que conseguimos alcançar aquele “click” na cabeça que faz tudo ganhar algum sentido.
O fato é: prazer e dor andam mais juntos do que gostamos de admitir. Então, minha ideia aqui é, além de compartilhar minha trajetória, trazer a parte teórica e deixar vocês decidirem se querem se abrir pra certas possibilidades práticas ou não. Vamos lá, o que essas letras realmente significam?
Imagem: Giphy
B: Bondage e Disciplina
Apesar de serem duas coisas diferentes, bondage fala sobre restrições físicas e disciplina sobre restrições psicológicas. Não necessariamente precisam de acessórios, mas aqui podem ser incluídas algemas, cordas de bondage e shibari, vendas, dentre outros. Já na disciplina são estabelecidos comportamento, tempo, como cada pessoa deve ser chamada, os tipos de trocas e respostas no geral, como seguir as demandas e regras pré estabelecidas e possíveis punições caso a pessoa na posição de submissão seja desobediente. Mas lembrando aqui que este é apenas um mínimo resumo de todo esse espectro, e que até a punição é escolhida antes e consentida pelas pessoas. Aqui não cabe espaço pra surpresas.
D: Dominação e Submissão
Esses são os papéis que as pessoas envolvidas podem ocupar durante as práticas e o tipo de poder que cada um vai ter nesses momentos. Basicamente, os dominantes são as pessoas que executam as ações e os submissos são quem recebem, em inglês também são chamados de top (dom) e bottom (subs). Muitas vezes as pessoas acabam adaptando esses papéis para seu estilo de vida como um todo, fora da esfera sexual, e vivem no que são chamados de 24/7 do BDSM. Há quem goste de uma hora assumir um papel e em outra agir de outras maneiras, conhecidos na comunidade como switch. Mas o que é mais comum de ve é esse papel de poder servindo como um lugar de descanso dos papéis tradicionais da vida real. Ou seja: vamos supor que uma mulher que gerencia a própria casa, é chefe no trabalho, comande equipes e não possa transparecer fragilidade etc. queira variar um pouco e sair desse lugar de alerta de quem “manda” nos outros o dia todo e na cama escolha apenas acatar ordens, ser submissa sexualmente e se satisfaça assim, relaxando dessa obrigação do papel de líder. Outra coisa comum é ver pessoas tímidas, calmas e até passivas no dia a dia se mostrando verdadeiras dominatrix nos momentos íntimos. Claro que não é uma regra e nem estereótipo, mas são características curiosas que venho observando ao longo dos anos. Uma coisa interessante de perceber também nessas dinâmicas é como a pessoa dominante se coloca 100% à disposição de cuidar e se responsabilizar pelo submisso durante as sessões. Há de fato uma seriedade capaz de criar um ambiente totalmente seguro e ideal pra todos os envolvidos, ainda mais sabendo que todos os termos são combinados previamente.
SM: Sadismo e Masoquismo
Aqui tudo é sobre o prazer que receber e promover a dor consentida traz. Seja através de práticas físicas, seja de práticas psicológicas, o sadomasoquismo fala sobre essa relação bem próxima que as duas experiências possuem, e como elas se juntam no corpo e na mente dos praticantes de BDSM. Existem as pessoas que se consideram mais sádicas, ou seja, que gostam de provocar dor, e as masoquistas, que são as que gostam de sentir. Pode parecer muita coisa, mas nem sempre vai ser algo extremo ou muito fora do que estamos acostumados a experienciar no sexo do dia-a-dia. A intensidade das práticas e as ferramentas usadas (chicote, chibata, palmatória, mãos, velas de parafina, gelo, grampos de mamilo etc.) sempre vão ser definidas de acordo com o que é mais interessante pra cada um, e é tudo mais normal do que pode parecer de longe. O famoso e amado tapa na bunda que o diga.
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Entendendo essa primeira parte de nomenclaturas, tudo ainda pode parecer meio confuso e demais pra digerir, eu entendo. Masm caso tenham percebido, a questão central das práticas é a segurança através do cuidado e do consentimento, tornando tudo até previsível ao ser tão seriamente combinado. Você pode não saber exatamente a hora que cada coisa vai acontecer, mas vai entrar na brincadeira sabendo que foi dito tudo o que seria feito e o que não será feito de maneira nenhuma. O BDSM é o lugar perfeito pra se soltar e deixar pra trás o controle que tanto atrapalha o prazer, justamente por vir de um ambiente controlado da melhor maneira possível. E foi nesse ponto que eu encontrei a ligação entre as práticas e o caminho pra olhar e cuidar de certos traumas. Entendendo que o trauma sexual é algo que acontece fora da permissão e do querer, é fácil entender porque muitas vítimas precisam de bastante tempo até voltar a se relacionar com alguém. Sei que o BDSM pode até parecer uma ferramenta muito inusitada (e, assim como várias outras, não ser ou funcionar pra todo mundo), mas com uma potência facilitadora imensa pra esse resgate de confiança, sensação de segurança e controle dos estímulos.
Embora seja importante quebrar o mito de que as pessoas que gostam de atividades sexuais fora do religiosamente esperado sejam sempre estranhas ou vítimas de abuso (inclusive já tendo um estudo recente publicado no Sexuality and Social Research Journal, mostrando que praticantes de BDSM e não praticantes possuem os mesmos níveis de traumas na infância), quando passamos por algo difícil, todas as ferramentas de cura devem ser olhadas com atenção. Assim, conseguimos abrir o leque das possibilidades e escolher só o que faz mais sentido pra cada um. E quais são os elementos mais importantes e inegociáveis que transformam esse mundo em algo capaz de cuidar ao invés de trazer ainda mais gatilhos?
Existe um lema importante no BDSM que resume muita coisa, é o salvo, são e consensual (safe, sane and consensual, tendo também a versão do risk aware consensual kink). Pra que qualquer atividade seja iniciada, é importante que as pessoas estejam com plena consciência e aptas pra consentir, além de não colocar ninguém em risco (e não se colocar), ou pelo menos ter noção dos riscos, pra ir com cuidado. Por exemplo, pra não machucar ninguém numa prática de bondage ou shibari, é importante que a pessoa estude antes pra saber como atar e desatar os nós, lidar com as cordas, não pegar nenhuma parte mais delicada das articulações, e por aí vai. Risco há, mas tendo consciência deles se consegue agir da melhor forma possível. A gente vai descobrindo que leveza e intensidade coexistem nesses ambientes e tudo fica mais gostoso e fácil de explorar.
Contratos e lista de consentimento com opções de Sim, Não e Talvez. Eu já até tinha trazido essa lista como uma atividade à parte, porque só ela, em si, já é um exercício de autoconhecimento maravilhoso, mas que aqui consegue ser ainda mais importante. Dizer sim pra uma coisa jamais vai significar dizer sim pra tudo, por isso é tão mágico poder destrinchar as milhares nuances das atividade sexuais, analisar como você se sente diante de certos termos e entender o que vale a pena ser explorado ou não. Listando as atividades e marcando o que você quer tentar, talvez tentaria e o que não quer fazer, não só a pessoa que está com você já recebe um panorama completo pra não ultrapassar nenhum limite, como você mesma consegue se entender e estabelecer conscientemente seus desejos e aversões.
A palavra de segurança também é essencial. Ela serve pra comunicar que algo não está bem. Seja um desconforto, mais dor do que o esperado ou qualquer sentimento e sensação que não esteja legal. O ideal é usar uma palavra que seja fácil de falar, mas que não seja normalmente usada entre quatro paredes, assim não há margem de erro ou interpretações Você pode escolher nomes de comidas, como “chocolate”, animais, plantas, ou simplesmente usar o sistema de semáforo onde “vermelho” quer dizer pare imediatamente, “amarelo” vá devagar e “verde” pode ir. Com ela, nós temos um amparo e tranquilidade extra pra seguir ou não. Também é ótimo pra ir checando durante, porque, às vezes queremos parar no começo, meio ou final (o que é absolutamente ok) e precisamos assegurar que toda e qualquer decisão será respeitada.
Outro ponto interessante é que os estados de consciência podem ser alterados ao receberem tanta liberação de adrenalina de uma vez, e até nisso a comunidade do BDSM já se atentou e criou um termo que requer atenção: o subspace. Geralmente quando a pessoa está recebendo muitos estímulos, pode ser que ela fique desnorteada e entre nesse estado similar ao um transe. O subspace pode ser um ótimo lugar (e até transcendental), mas o perigo mora em querer mais do que já era acordado anteriormente. Por isso, a importância de contratos ou listas claras: assim não há risco de fazer nada no calor do momento e acabar se arrependendo depois. Isso é sobre ter consciência e saber comunicar seus limites pra que nem você nem o outro acabem os ultrapassando.
Dito tudo isso, aftercare é o que não pode faltar no final. Traduzido preguiçosamente como “cuidado após”, esse é um conjunto de atividades de conexão e afeto essencial depois de qualquer prática mais intensa durante o sexo. Pode ser tomar banho junto, cuidar das possíveis marcas na pele, deitar de conchinha, oferecer água, beijar lento, conversar sobre o que foi legal e o que talvez seja melhor não repetir, fazer massagem, enfim, qualquer ato de carinho e atenção que ajude a reforçar o respeito entre as pessoas envolvidas, retornar ao estado tranquilo, acalmando os níveis de adrenalina e deixando a respiração menos ofegante. Caso tenha existido qualquer momento de culpa, vergonha ou medo (ou até disforia pós-coito, que pode acontecer depois de qualquer atividade sexual), o aftercare vem pra amparar e acalmar os ânimos. Caso tenha corrido tudo como o esperado e desejado, ele chega pra encerrar com chave de ouro.
Pra finalizar, o que eu percebi é que sentimos atração pelo erotismo que os jogos de poder possuem, não pela violência. Foi necessário o abandono de algumas crenças conflituosas que balançavam num pêndulo entre a culpa cristã e o medo de não ser feminista o suficiente pra que o prazer pudesse ganhar espaço. Foi como redescobrir a minha própria sexualidade e entender que os desejos podem não caber na caixa do esperado socialmente, mas que se eu os liberto, sinto como se eles finalmente chegassem em casa. O prazer gosta de rir na cara das expectativas internas e externas – o que eu fiz foi apenas me dar a permissão pra rir junto dele. Afinal de contas, o sexo, independentemente de ser com pitadas de BDSM ou completamente baunilha, é sobre se divertir enquanto descobre mais de si e do outro, não é mesmo? Melhor ainda quando conseguimos nos cuidar e curar através do subversivo, num ambiente seguro, minuciosamente criado pra que se possa ser e sentir até onde os limites vão, no equilíbrio perfeito que cada pessoa vai encontrar entre o peso e a leveza, a dor e o prazer, o controle e o descontrole, o veneno e o antídoto.
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