Fome de outro

Será que a dependência é tão ruim assim?





Na contramão das últimas tendências em saúde mental de banquinha da internet, venho aqui fazer uma defesa da dependência. Pior das vilãs, motivo de vergonha e derrocada, sinônimo de opressão, tudo isso tem sido colado às costas da dependência, em uma atividade que vou qualificar, de saída, como bastante suspeita.

Numa dessas coincidências que não o são, já que trilhar caminhos é abrir caminhos, já que se interessar diariamente por uma estrada de pensamento é abrir estrada, encontrei palavras que me ajudaram a dar conta das minhas reflexões sobre a dependência em um livro da Judith Butler que comecei a ler para saber das relações que ela andou fazendo entre corpo e política. Em um dos capítulos de Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia, ela escreve:

“Uma pessoa pode decidir que precisa se livrar de toda dependência porque a forma social assumida pela dependência é a exploração. Ainda assim, seria um erro identificar as formas contingentes que a dependência assume em condições de de relações de exploração laboral [e não só] com o sentido final e necessário da dependência. Mesmo que a dependência sempre assuma uma ou outra forma social, ela permanece algo que se transfere entre essas formas, e assim prova ser irredutível a qualquer uma dessas formas. Na verdade, o meu argumento mais forte é simplesmente o seguinte: nenhuma criatura humana sobrevive ou persiste sem a dependência de um ambiente sustentável, das formas sociais de relacionalidade e das formas econômicas que presumem e estruturam a interdependência”. Muita coisa aqui, vamos por partes.

Partindo desse panorama social e indo no sentido de, por exemplo, uma relação de namoro ou casamento, o que poderíamos pensar sobre o que ela diz? Digamos que haja nessa relação uma mulher muito vulnerável, que precisa do marido para comer, é explorada no serviço doméstico, não encontra espaço para diálogo nem para expressar suas questões. Ou, no exemplo de Butler, um patrão e um empregado da massa de precarizados, ou mesmo um contratado com carteira e que, para manter esse benefício, se vê obrigado a trabalhar cada vez mais e reivindicar cada vez menos. Esses são, em linhas gerais, os modelos do que entendemos por dependência no uso mais comum da palavra.

Mas como será que se organizaram esses cenários? A dependência entra aí como causa, como consequência ou em outro lugar? Por que agimos e temos pensado em termos de somente eliminar a dependência sem nos importar com os termos que a definem, com as condições que estão ligadas às suas formas de aparição?

Então, claro, salvo exceções, não queremos ser dependentes nesses moldes. Não queremos depender onde depender significa ser explorado e sofrer violência sistemática. Todos nos mandam correr dessa armadilha. Até aí, tudo certo.

Mas o que Butler diz é que isso do que fugimos é uma forma da dependência, e que a dependência não pode ser reduzida a isso. Há algumas coisas em jogo que vão fazendo com que a dependência, como ela define, “assuma”, certas formas sociais. As forças que moldam esses quadros terríveis nos dizem que o problema não são essas tais forças e suas consequências, mas a dependência em si.

Vamos pensar nas soluções mais oferecidas hoje em dia. Bom, se depender é tudo de ruim, então reina a tendência do “auto”. A autoestima, o autoamor ou amor próprio, o autocuidado, uma certa ideia de unidade completa que não precisa absolutamente do outro, que chega para trocar ou para compartilhar estando, como se diz, “plena”. Não é esquisito isso? Não parece algo que se confunde com consumo, sabe, como se as pessoas não pudessem compartilhar indefinições e vulnerabilidades? Será que todo auto não passa pelo alter, pelo outro? Alguém aprende a amar sozinho, o próprio eu não é em boa parte outro?

No âmbito do trabalho essa história não se desenharia atualmente na figura do empreendedor de si mesmo? Aquele que é seu próprio patrão mas também seu único empregado, responsável pela coisa toda? Isso não é uma previsão de futuro, é o que temos e vemos por aí nesse tempo de agora. O que reforça nossa suspeita de que há algo muito errado, porque se a dependência fosse de fato o problema, esse lance do auto teria dado incríveis resultados.

Só que não deu.

Pesquisas de todo o mundo trazem pessoas falando de vidas cada vez mais solitárias e sem confiança, tanto nas outras pessoas quanto em si mesmas e no futuro. Hoje, no Brasil, mais de 60% dos trabalhadores informais ganham até 1 salário mínimo. Ou seja, grande parte das últimas gerações de empreendedores do bloco do eu sozinho trabalham muito e não conseguem comer e morar. Vejamos dados recentes do Dieese, que aqui consideram o salário com o desconto previdenciário. “Quando se compara o custo da cesta e o salário mínimo líquido, ou seja, após o desconto de 7,5% referente à Previdência Social, verifica-se que o trabalhador remunerado pelo piso nacional comprometeu em média, em junho de 2022, 59,68% do rendimento para adquirir os produtos da cesta, pouco maior do que o de maio, quando o foi de 59,39%”.

Poderíamos aqui abrir uma hipótese, que evidentemente precisará de muito mais pesquisa e dedicação do que podemos entregar aqui, mas, ainda assim e por enquanto, vamos propor uma pergunta. Nesses casos, conforme vamos pensando, não parece que a suposta eliminação da dependência na verdade tratou de formatar a dependência em termos crueis, vorazes e extremos de servidão e assujeitamento?

Um dos significados apagados de dependência é simplesmente correlação. Em muitas falas dos povos originários brasileiros, por exemplo, a dependência é tratada como algo básico de uma visão de mundo que inclui pessoas, bichos e ambientes, sistemas vivos e escolhas. Não se trata somente de um apelo a uma suposta natureza dada de início, a ser preservada ou recuperada, mas de um complexo fluxo de ações que têm grandes implicações políticas. É um chamado à criatividade coletiva.

Caso todas as pessoas sentissem que depender de uma comunidade, de uma sociedade, significasse também e especialmente ser ajudado e cuidado entre seus integrantes, como seria? Como seria receber dessa comunidade a mensagem de que ela também depende de nós, não por meio de nossa exploração, exaustão e ruína, mas pelo nosso bem-estar, pelas vias do nosso bem-viver?

Se a dependência pode assumir outras formas, que melhores formas ela poderia assumir?

Vamos pensar na chegada de um ser humano ao mundo. Não há como negar que esse ser dependa de outros. Isso é necessariamente nocivo? Sabemos que não. E não se trata de dizer que em algum momento esse ser deixa de depender dos outros, mas que os termos dessa dependência mudam. Pensando em uma criança pequena, ela pode depender dos pais e ser ouvida e respeitada em sua existência, em seu desejo, como sujeito criativo. Mas ela também pode ter essa dependência usada contra ela, para submetê-la, assujeitá-la. A dependência, portanto, não é sinônimo absoluto de domínio, opressão e abuso, embora possa assumir essa forma.

Não tem “auto” que não passe pelas outras pessoas. Fazer o “seu” é algo bom e necessário, mas não é separado nem se sustenta sem a conexão com o social. Ou, nas palavras de Butler, “A vida que estou vivendo, embora claramente seja essa vida e não outra, já está conectada com redes mais amplas de vida, e se não estivesse conectada a essas redes mais amplas, eu não poderia realmente viver. Então, a minha própria vida depende de uma vida que não é a minha, não apenas a vida do outro, mas de uma organização social e econômica da vida mais ampla. (…) Isso constitui quem eu sou, o que significa que entrego uma parte de minha vida distintamente humana para viver, para ser minimamente humano”.

Num corte estranho aqui, penso nas representações que compara certas elites a vampiros, organizadores da dependência enquanto exploração brutal (aparecem como magnatas capitalistas, fascistas, escravocratas etc). Nessas histórias, como aqui e agora, algumas vidas, vidas específicas, não passam de depósitos de sangue prontos para o sacrifício. Aqueles que compactuam com isso não querem entregar nada e, talvez assim, se afastem progressivamente do minimamente humano.

Tenho pra mim que tanto “auto isso e auto aquilo” sejam luzes ofuscantes feitas para desviar forças. Forças de mudança que não sejam levadas pelo caminho que só interessa aos que desejam manter os mecanismos de exploração, aos arautos do liberalismo, do individualismo, da insistência ardilosa nessa ideia de que questões sociais são resolvidas de forma individual. A velha lorota do “minha parte eu fiz”.

Se a dependência fosse redesenhada a partir de formas e organizações sociais radicalmente solidárias, como seria? O que restaria para os sanguessugas? Talvez a vida em sua potência de bem viver, que só pode ser com todas as vidas, e nunca só com os “escolhidos”.

A vida é anti-supremacista. Mas os vampiros não gostam disso.

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