A galáxia esquisita (e única) de Björk
Devemos ver e ouvir a cantora islandesa para compreender a psiquê humana e navegar por seus futuros e profundezas: coragem!
Depois de cinco anos, Björk saiu da toca para lançar um esperadíssimo novo disco. Artífice do canto, gênia da performance, a cantora e compositora islandesa domina como poucas o terreno da imagem, fazendo da moda e da tecnologia ferramentas para expressão pessoal. Ela não define o zeitgeist: visionária, antecipa futuros, criando uma verdadeira galáxia, onde se move: esquisita, única.
Seu décimo álbum, Fessora, saiu inteiro nas plataformas digitais dia 30 de setembro, e agora em outubro ela desembarca na América do Sul e no Brasil. Sorte grande. Musicalmente, ela continua relevante como sempre. E isso não é pouco, numa trajetória ultra peculiar que já vai chegando a quatro décadas.
Björk concedeu também algumas entrevistas e encheu nossos olhos com alguns vídeos que soltou no YouTube, para as faixas Atopos, Ovule e Ancestress.
Atopos é um techno nervoso, feito com o produtor Kasimyn. Não espere um hit de pista, enquanto não saírem os remixes. Quer dizer, talvez numa manhã na Mamba. O clipe é uma loucura louca, dirigido pelo fotógrafo e videomaker islandês radicado em Londres Vidar Logi, verdadeira potência criativa. Segue no IG pra catar todos os looks de Björk, ele postou todos. O cenário: um idílico jardim underground, uma rave, com uma pegada do bar de Star Wars original, direcionado para as gerações de hoje. E as gerações de hoje ouvem Björk?
Deveriam. Está aí uma artista completa. Em que idioma ela canta? Em inglês. Poderia ser islandês ou dinamarquês, mas é sempre sofrência, com as sílabas separadas, a pronúncia própria, a respiração excepcional. Os vídeos agora ajudam e trazem as letras das canções, para facilitar a compreensão (no site dela tem também). Não que tudo faça sentido. Sempre foi assim. Faz sentido, e todo, para ela, naturalmente, com muita biologia, seres mitológicos, meio ambiente, psicanálise, surrealismo, niilismo e a maluquice que nos ajuda a atravessar o cotidiano comum dos terráqueos serumanis. Björk não é desse planeta.
Sorrowful Soil foi escrita antes da morte da mãe de Björk, e poderia ser um canto de anjos, triste à beça. Esse episódio atravessa também o disco. “Ancestress” é a outra faixa dedicada à mãe, e foi composta depois das cerimônias do funeral, a que ela se dedica também a cuidar. Sindri, filho de Björk, fez o arranjo e canta também, ao fundo. No vídeo, que faz referências ao filme Sonhos, obra-prima visual de Akira Kurosawa, ela participa de uma espécie de procissão, ritual, com o rosto coberto por uma tela vermelha.
O álbum trata também do isolamento da pandemia, das questões mais profundas que nos acometeram nesses últimos anos doidos que vivemos. Björk segue acompanhada de colaboradores fieis que contribuíram para a construção de sua imagem e de sua persona, como o fotógrafo de moda inglês Nick Knight e o escritório de design M/M Paris. No canal de YouTube da Gucci, é possível ver o making of do já icônico vestido vermelho que ela usa no clipe de Ovule, a ultrafeminina música em que ela, aos 56 anos, traz sua visão do casamento: “Quando eu era uma garota, sentia que o amor era um edifício e marchava em direção a ele. Mas divórcios letais e demoníacos demoliram o ideal.” Pois é, Björk, não é fácil para ninguém.
Filha da cantora com o artista performático Matthew Barney, Isadora Bjarkardóttir Barney, ou Doa, como ela se chama, vem chamando atenção como atriz, cantora, cineasta e modelo, como apareceu recentemente em uma campanha para a Miu Miu, e em revistas como a The Face, falando de seus múltiplos talentos, e da importância da mãe em sua vida. A garota é demais, uma delícia de acompanhar, veja no instagram dela. Bjarkdóttir significa, em islandês, filha de Björk. A belezura do pai e da mãe se encontra na genética ímpar de Doa.
Entrevistei Björk pelo telefone há alguns (muitos) anos, quando eu ainda trabalhava na Folha de S.Paulo. Gelei quando ela atendeu, a voz absurda do outro lado da linha: “hello!”. Sempre fui fã, desde os tempos do Sugarcubes. Ela islandesa, eu finlandesa, o DNA escandinavo, os olhos puxados, até havia quem achasse certa semelhança, quando tínhamos o cabelo laranja. Pense nos anos 1990. Ao final da entrevista, não resisti e me declarei sua admiradora, algo impensável no jornalismo sério. No Brasil, quando ela veio, vi somente alguns minutos de seu show, mas ansiosa demais, passei mal e tive que ir embora. Festival grande nunca foi mesmo muito minha praia.
No cinema, tive a pior experiência fílmica de todos os tempos com Dançando no Escuro (2000), do perturbado e perturbador Lars von Trier, em que ela fica cega e seu filho também, e que remete a Noviça Rebelde (um dos filmes que mais amo). A cegueira sempre foi um temor para mim, tinha pesadelos recorrentes em que eu não enxergava e, a bem da verdade, tenho medo de escuro (!). Além disso, nunca entendi o motivo de alguém fazer um filme tão triste, e ver Björk sofrendo na tela doeu em mim. Assisti à projeção numa dessas cabines para a imprensa, e eu estava praticamente sozinha na sala de cinema. Chorei chorei chorei e tive que ir embora também, antes de o filme terminar. A audição dos discos também pode ser dilaceradora. Tem algo no timbre da voz dela que (me) corta a alma. Não é toda hora que dá para escutar. Não é assim trilha de um sábado de verão.
Tudo isso para dizer que Björk é uma intérprete dos nossos tempos. Dos temores mais íntimos, das verdades mais silenciosas, e também dos amores mais profundos, da morte e da vida. Ai.
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