Coques bantu, ou melhor, coqueirinhos!

O penteado multiuso carrega a herança da África subsaariana e é conhecido ao redor do globo por diferentes nomes.





Este texto faz parte de uma série de reportagens dedicadas a penteados de simbologia ancestral africana. Não deixe ler também sobre dreads, black power e tranças nagô.

“No Pelourinho, você vê muita gente com esses coquinhos, mas há um tempo não ouvia com esse nome: coque bantu. Aqui, chamamos de coqueirinho”, conta Samir Pereira, 30 anos, artista criativo co-fundador da VIXEVIXI, marca baiana que atua de forma integrada nas áreas de arte, moda e beleza para promover imagens de poder para o corpo negro. “Com a internet, há um fortalecimento no que tange o imagético das regiões africanas e é possível perceber que esse penteado é diaspórico, ele tem um valor simbólico ancestral agregado.” Nem Marc Jacobs em 2015, tampouco Valentino em 2016: os signatários do penteado conhecido como coqueirinho, coque bantu ou china bumps são os povos bantu, um termo que abrange aproximadamente 400 grupos étnicos com semelhanças linguístico-culturais na África subsaariana.

“Aqui em Salvador, desde a infância, se a criança tiver o cabelo mais cheio, a gente já vai fazendo os coquinhos com o elástico. É bem comum, na verdade”, conta Samir sobre a popularidade do penteado na cidade com maior concentração de negros e negras fora do continente africano. Com a ajuda de um bom pente para divisão do cabelo, o coque é prático e pode ser feito em casa. Vale usar uma pomada ou gel para ajudar na seleção das mechas e liberar toda a criatividade para criar os formatos da divisão, afinal, boa parte do apelo visual está nesse desenho no couro cabeludo. De quebra, o estilo é democrático: é possível fazer seu coqueirinho usando cabelo crespo natural, alisado, trançado ou com dreads.

A cabeça com vários coques em si já garante um modelo pronto-para-sair, mas a finalidade também pode ser uma preparação do cabelo para uma umectação, hidratação ou ainda uma divisão antes de se trançar. Além disso, é uma forma de texturizar o cabelo natural. “Se você quiser deixar seu cabelo mais ondulado, é só fazer o twist, enrolar no bantu e, nesse tempo em que as mechas ficam presas, os fios vão tomando forma. Assim, você pode definir o tipo de ondulação, mais aberta ou mais fechada, de acordo com o tamanho do coque”, explica Samir. Talvez seja essa funcionalidade que explique a popularização do penteado entre pessoas brancas, como foi o caso do burburinho que gerou-se quando a cantora Adele, ou a socialite Khloe Kardashian, ou ainda a também cantora Björk no começo dos anos 1990, adotaram os tais coques. Antes de tropeçar na reflexão sobre o que significam esses recorrentes casos, é preciso entender um termo que tem se tornado quase rotineiro nas redes sociais e pouco nítido em seu significado: o que é apropriação cultural?

“Com a internet, há um fortalecimento no que tange o imagético das regiões africanas e é possível perceber que esse penteado é diaspórico, ele tem um valor simbólico ancestral agregado”, Samir Pereira, fundador da VIXEVIXI

No início do livro Apropriação Cultural (2019), Rodney William explica: “Não há apropriação cultural quando um grupo excluído ou marginalizado é forçado a assimilar traços da cultura daqueles que o dominam para sobreviver, como ocorreu durante todo processo de colonização, em especial na escravidão. Apropriação cultural é exatamente o oposto. Como já demonstrou Abdias Nascimento (pensador, poeta, escritor, professor, político e ativista brasileiro), a partir da violência da escravidão, todas as heranças culturais negras foram esvaziadas. O colonizador se apropriou da cultura do escravizado inclusive como uma forma de aniquilá-lo. Portanto, definir apropriação cultural vai muito além de formular uma lista do que pode ou não ser usado.”

Com isso em mente, a pergunta mais importante frente à disseminação dos coques bantu é sobre intencionalidade. Trata-se de um esvaziamento de uma herança cultural de um grupo que sofre opressão social, como racismo? Ou seja: é só pelo visual? Se sim, é apropriação cultural. Trata-se de um roubo de protagonismo? Ou seja: é mais fácil as pessoas conhecerem o penteado por “coques da Adele na Jamaica” do que como “coques bantu”? Se sim, é apropriação cultural. Lembrando que esta, por sua vez, é uma dinâmica de dominação por definição.

“Esta é a grande problemática que a gente encara sobre as referências da estética negra: os elementos são muito disseminados sem uma historicidade de fato”, dispara Samir. “Quando se usa o coque bantu na moda, é necessário referenciar de onde esse coque vem. Fazer um esforço para que as pessoas entendam que ele faz parte de uma cultura e que ele é usado dentro do entendimento dessa cultura. Nada é aleatório.” Para o trancista e dreadmaker soteropolitano, o cabelo natural reflete um movimento de autoconhecimento e autoestima, processos que caminham juntos. “Conhecer seu cabelo crespo e resgatar um penteado ancestral é uma autonomia cultural que a gente precisa ter enquanto pessoa negra da diáspora”, afirma.

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