Os filtros do Instagram estão mudando a nossa aparência na vida real?

Padrões de beleza existem há séculos, mas a nossa recente fixação por uma aparência computadorizada e pouco realista pode nos representar riscos físicos e psicológicos — e deixar todo mundo com o rosto da Kylie Jenner.





Você está sem fazer nada na sua casa e decide gravar um stories para o Instagram. Para disfarçar a cara lavada, usa um filtro embelezador. De uma hora para outra, você parece naturalmente bela. Pelo menos, a sua versão computadorizada dentro da plataforma.

O vídeo engraçadinho ou a selfie bonita é publicada. Decide, então, passar pelos stories das pessoas que segue. Todas estão usando o mesmo tipo de filtro que “salvou” o seu rosto sem maquiagem. As maçãs do rosto estão saltadas, o nariz afinado, a boca maior e os olhos, enormes. Feições dignas de uma super model, que tornam as influenciadoras e suas colegas de trabalho muito parecidas, ainda mais em um momento de distanciamento social em que, na maior parte do tempo, você está vendo as pessoas apenas virtualmente. “A sensação é de que os filtros do Instagram roubaram os nossos rostos“, diz a historiadora Luciana de Almeida, autora da tese “Os sentidos das aparências: invenção do corpo feminino em Fortaleza (1900-1959)”, e estudiosa da história da beleza.

Surge então, uma pergunta inevitável: o Instagram está influenciando na mudança da nossa aparência física
não apenas no mundo virtual mas também no real?

“Muitas pessoas perseguem a sua própria imagem do perfil do Instagram como se fosse uma versão ‘melhorada’ de si mesmas”, diz Hilaine

“As redes sociais nos coagem a sempre maximizar o que é belo o tempo inteiro”, diz a historiadora. Se antes a beleza seguia elementos definidos e mais permanentes, agora essa superexposição cobra ainda mais do nosso corpo e rosto. “O filtro mostra que, apesar da aparente perfeição, isso não basta. Temos sempre que tornar essa imagem mais interessante. Não podemos mais ter o nosso próprio rosto”.

A fala da especialista pode soar exagerada, mas, se pensarmos bem, vemos mais a nossa imagem dentro do telefone do que fora dele. “Será que preciso retocar o batom?”. Em vez de sacar um espelho da bolsa, usamos a câmera de selfie do celular mesmo estando em casa. “Tudo se modificou de acordo com esse espelho que está em nossas mãos quase 24 horas por dia”, aponta Hilaine Yaccoub, consultora e pesquisadora de comportamento do consumidor, doutora em antropologia do consumo.

Acentuando o cenário, muitas vezes, os softwares dos dispositivos portáteis têm filtros embelezadores já integrados. Caso eles não sejam desligados, deixam a pele mais lisa, sem olheiras, os olhos enormes e as bochechas rosa. Nos acostumamos a ter uma visão irreal do que somos, do que aparentamos. E isso tem a ver com as scrolladas que damos na timeline. “Muitas pessoas perseguem a sua própria imagem do perfil do Instagram como se fosse uma versão ‘melhorada’ de si mesmas”, afirma Hilaine.

Rosto de Instagram

O Instagram foi lançado em 2010. Inicialmente restrita aos celulares iPhone, da Apple, pouquíssimas pessoas tinham acesso à plataforma de compartilhamento de fotos, já que o aparelho era caríssimo para a maior parte da população. Em 2012, o aplicativo também foi disponibilizado para celulares com sistema Android, cujos preços eram mais baixos. Foi a feira da fruta — ou do filtro Valencia. Qualquer clique era digno de estar no feed, até que o uso da plataforma se profissionalizou e mudou o nosso senso de estética. “Da mesma forma que tudo é passível de venda, em uma rede social que preza a imagem, a estética se torna commodity”, reflete Hilaine.

Por volta de 2014, o design de sobrancelha arqueada, bem desenhada, sem nenhum pelinho rebelde, virou um dos mais pedidos nos salões. Ela foi apelidada de “sobrancelha de Instagram” porque estava por todo canto dentro da plataforma que se tornou a principal fonte de inspiração de beleza.

Com mais de 1 bilhão de usuários ativos, a rede social recebe mais e mais vídeos e fotos com tutoriais de maquiagens para tudo o que é ocasião e tornou influenciadoras como a ex-BBB Bianca Andrade, a Boca Rosa, e Niina Secrets famosas.

Além disso, 75% das meninas que sofrem de depressão também têm baixa autoestima e estão insatisfeitas com sua aparência. No Brasil, por sua vez, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica diz que, nos últimos dez anos, houve um aumento de 141% no número de procedimentos estéticos feitos por jovens de 13 a 18 anos.

Dados como esses acenderam uma luz vermelha dentro do Facebook e Instagram. Eles começaram, desde setembro do ano passado, a restringir publicações sobre intervenções e emagrecimento para usuários menores de idade, além de remover posts que prometiam resultados milagrosos.

Em outubro de 2019, o Instagram também derrubou efeitos de cirurgia plástica e parou de aprovar o lançamento de novos filtros do tipo. Os usuários também podem denunciar filtros que considerem uma violação das políticas da rede social. “Sabemos que a pressão estética é algo que sempre esteve presente na sociedade e estamos comprometidos em fazer com que o Instagram seja uma plataforma positiva, por isso, analisamos constantemente como nossas ferramentas podem afetar o bem-estar das pessoas”, diz Karina Newton, diretora de políticas de uso do Instagram, em entrevista por e-mail.

A executiva diz, no entanto, que os tais filtros embelezadores, que tornam as peles mais lisas, continuam disponíveis desde que não sejam associados à cirurgia plástica. Até a publicação dessa reportagem, ainda estava no ar, por exemplo, efeitos do tipo “top model”, que afinavam o nariz e aumentavam as maçãs do rosto. Mais sutis se comparados aos de cirurgia plástica, mas que, ainda assim, mudavam consideravelmente os traços. Efeitos do tipo não são exclusividade do Instagram, e recentemente se tornaram extremamente populares também no Tik Tok que, inclusive, possui uma ferramenta de edição embutida chamada maquiagem em que é possível moldar o formato do rosto.

Na contramão do body positivity?

Mas o Instagram não foi o primeiro a influenciar na relação com a nossa aparência. No começo dos 2000, eram comuns as capas de revistas com celebridades cheias de retoques com Photoshop. Eram tantas mudanças que chegavam a surgir efeitos “monstruosos”, em que umbigos e até membros inteiros sumiam com um clique. E foi exatamente todo esse exagero que induziu muitas pessoas a quererem algo mais próximo da realidade.

“Quando foi apontado o exagero do uso do Photoshop, uma busca por autenticidade e verdade começou a surgir nas revistas e publicidade”, relembra a historiadora Luciana de Almeida. É quando começa a retomada de imperfeições, como movimentos que vão desde o body positivity, que acolhe os diversos tipos de corpo, até o skin positivity, que busca normalizar a acne.

E isso mostra que nos encontramos em uma contradição: vivemos em uma sociedade superexposta, da hipervisibilidade. Mas publicar uma foto sem intervenção nenhuma, sem esconder aquela espinha no queixo, se torna um ato de coragem. “Na sociedade da transparência, é paradoxal que a regra seja o uso de filtros para mostrar a verdade de alguém”, reflete Luciana. Além disso, esses movimentos são ainda muito recentes e encontram, na vida real, muitos obstáculos.

“É muito complicado aplicar o body positivity no dia a dia quando existem tantas referências que o desconstroem”, diz Hilaine. “Ao sair para comprar roupas, é raro encontrar bancos especiais para quem está fora do ‘padrão normativo’; os olhares discriminatórios também nos mostram como temos ainda um longo e espinhoso caminho à frente”.

Apesar das hashtags sobre positividade estarem bombando na timeline, os filtros exagerados não deixaram de se tornar populares. Afinal, um não deslegitima o outro e há quem os utilize como mais um recurso de expressão da individualidade. “Eles podem demonstrar uma habilidade do criador de conteúdo em escolher o filtro certo para o momento certo. Até porque o perfil da rede social passou a ser uma espécie de currículo vitae das pessoas do mundo moderno, demonstrando suas experiências, skills e gostos”, diz a antropóloga do consumo.

Os filtros e movimentos body positivity coexistem e podem, futuramente, colidir. “Não duvido que, em um dado momento, pesar a mão no Photoshop volte a ser tendência como uma reação ao movimento do sem filtro”, afirma Luciana de Almeida. Já é o que acontece hoje, por exemplo, no perfil no Instagram da Balenciaga, onde fotos editadas até o nível do considerado bizarro causam reações efusivas. “A imperfeição causa reflexão. Quando tudo é perfeito, ninguém pensa muito. E as redes sociais se alimentam de nossa atenção. Elas querem que a gente continue scrollando.”

O importante, no entanto, é não sermos deterministas. “Há casos e casos, o que precisamos é de bom senso em sabermos qual é a nossa fraqueza, se aquelas ferramentas nos oprimem e se estamos felizes em ser o que somos da maneira que somos”, finaliza Hilaine Yaccoub.

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